>>> Miguel Nicolelis explica como os avanços na ciência ajudarão no tratamento de doenças neurológicas

Miguel Nicolelis é um cientista cujas preocupações sociais fazem seu discurso por vezes soar como o de um político. Porém, diferentemente da maioria dos políticos, ele não ficou só nas palavras. Graças a seus esforços pessoais, e ao incentivo de apoiadores como a família Safra e a Universidade de Duke, nos Estados Unidos, onde é codiretor do Centro de Neuroengenharia e coordena uma equipe de pelo menos 25 pesquisadores, foi criado há cinco anos o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, em Macaíba, na periferia da capital potiguar.

O projeto o traz ao Brasil a cada dois meses, mas desta vez a visita tem outros propósitos. Entre os quais, explicar como a ciência pode ser um agente de transformação social na próxima segunda-feira, em Porto Alegre, onde Nicolelis abre o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento. Um dos apoiadores do Instituto é o Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, com o qual o cientista fez um acordo: montou um laboratório de neurociência de "reputação internacional", em troca da instauração, pelo hospital, do centro de saúde materna e infantil em Macaíba - o Instituto faz 800 consultas pré-natal por mês.

Nos próximos meses, os primeiros frutos dessa parceria chegarão às mesas de cirurgia do Sírio-Libanês, quando a técnica de uso de eletrodos para decodificar a atividade cerebral, criada no laboratório de Nicolelis, começar a ser usada para devolver movimentos a pacientes com paralisia.

Foi assim, "passando o chapéu" entre possíveis apoiadores, que Nicolelis trouxe até hoje 12 cientistas de renome internacional para trabalhar em Macaíba. Na semana passada, por exemplo, apresentou o projeto na Kennedy School, a escola de políticas públicas da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Embora ninguém seja formalmente indicado ao prêmio Nobel (a forma como os premiados são escolhidos é segredo) Nicolelis vem sendo cotado para receber o Nobel de Medicina desde 2008. Na entrevista a seguir, ele revela uma pequena parte dos feitos que justificam o reconhecimento internacional.


O GLOBO: A partir das pesquisas realizadas no seu laboratório, um consórcio de 10 países quer criar uma veste robótica que devolveria os movimentos a pessoas com paralisia. Qual o andamento desse projeto?

MIGUEL NICOLELIS: A veste está sendo construída na Universidade Tecnológica de Munique, que é membro do consórcio. O grupo de pesquisa neste momento está construindo a veste, e nós estamos simulando no nosso laboratório computacionalmente as características dessa veste.

O GLOBO: Ela vai ser a base para o desenvolvimento de equipamentos, aparelhos?

MIGUEL NICOLELIS: Não, a veste vai ser o artefato que as pessoas com paralisia severa vão usar para poder voltar a andar, esperamos, com a técnica que nós desenvolvemos. Ela vai ser o novo corpo dessas pessoas, como um exoesqueleto. Será para pessoas totalmente paralisadas.
O GLOBO: Que outras aplicações da tecnologia pesquisada em Duke, a tentativa de substituir a ligação do cérebro com o corpo, podemos imaginar no futuro? Os braços mecânicos controlados pelo cérebro já existem?

MIGUEL NICOLELIS: A gente está chegando muito próximo. Usamos matrizes de eletrodos implantados no cérebro, filamentos que parecem cabelos, que permitem o registro da atividade elétrica de grandes populações de neurônios. Essa técnica foi desenvolvida por nós. Existem vários braços mecânicos sendo desenvolvidos, e estamos desenvolvendo a tecnologia para ler os sinais cerebrais e permitir que a pessoa controle esse braço mecânico indiretamente com o cérebro. Estamos testando isso em animais.

O GLOBO: Quando podemos imaginar que isso estará sendo usado, aplicado por hospitais?

MIGUEL NICOLELIS: É difícil precisar, porque em ciência você não pode dizer o momento em que vai ter a eureka, mas eu estou trabalhando com um horizonte nos próximos anos.

O GLOBO: Quantos anos?

MIGUEL NICOLELIS: Nos próximos cinco, eu acho, a gente tem a chance de ter o protótipo clínico testado, e estudos clínicos cuidadosos que demonstrem (a eficácia). Mas em termos de medicina, cinco anos não é nada. Para quem esperou séculos por isso, cinco anos é como se fosse um milisegundo.

O GLOBO: E até que ponto isso vai ser acessível, ou será uma tecnologia muito cara para os pacientes?

MIGUEL NICOLELIS: Como qualquer tecnologia - o telefone celular, por exemplo - no momento em que ela começa a ser massificada, e as demonstrações mostram que ela é útil e tem um benefício muito grande, várias empresas vão se interessar em produzir, e o custo vai cair rapidamente. É que nem o laptop, o iPod, todas essas coisas cujo preço caiu porque houve uma demanda enorme. A lógica de tecnologia é essa: uma vez que você demonstra o breakthrough tecnológico, o custo tende a cair rapidamente. É como Santos Dumont dizia, o mais difícil é fazer o primeiro. Depois que o primeiro está feito, é fácil.

O GLOBO: O senhor também diz que, ao estudar o cérebro, muito além de coisas como recuperar a motricidade de pessoas paralisadas, a gente vai conseguir entender melhor o que é ser um ser humano, o que move os homens, quais os seus anseios. O que é, e quais as implicações de conhecer de verdade o ser humano?

MIGUEL NICOLELIS: A essência, o trabalho principal do cérebro, é produzir comportamentos. Esse é o grande trabalho do cérebro. E nós somos o resultado desse conjunto de comportamentos que cada um de nós produz ao longo da vida. E cada vida de cada ser humano que jamais existiu é única. As condições individuais desse ser humano jamais vão se reproduzir, e jamais ocorreram antes. Então no momento que você entender como o cérebro codifica informações e produz comportamentos, você vai ter nas mãos uma chave-mestra para entender porque os seres humanos fazem o que fazem. Porque eles se comportam da maneira que se comportam, porque reagem da maneira como reagem. A essência da nossa espécie está entre as nossas duas orelhas, embora a gente às vezes não use o que tem disponível.

O GLOBO: Em última análise quer dizer que um dia chegaremos ao ponto de comandar esses comportamentos, programá-los?

MIGUEL NICOLELIS: Não sei, tem gente que fala. mas tem uma distância muito grande entre entender e reproduzir, e tem gente que pinta os cenários mais assustadores possíveis. Eu não penso dessa maneira.

O GLOBO: E os cenários assustadores são de que tipo?

MIGUEL NICOLELIS: Aí não é a minha especialidade. Está cheio de gente que se autodenomina futurólogo, ou seja o que for, e adora pintar cenários catastróficos para a espécie humana. Eu não me aventuro nesse caminho.

O GLOBO: O caminho da medicina vai na direção de encontrar no cérebro a chave para as doenças e os problemas?

MIGUEL NICOLELIS: Não tem outra alternativa, porque lá é onde está o problema. Lembranças psiquiátricas, neurológicas, está tudo dentro do cérebro e da atividade cerebral.

O GLOBO: Podemos vislumbrar o dia em que doenças vão ser detectadas no cérebro, muito antes de se manifestarem?

MIGUEL NICOLELIS: Sem dúvida. Essa é uma das linhas de pesquisa ativas do meu laboratório nesse instante.

O GLOBO: E como trabalha essa equipe?

MIGUEL NICOLELIS: Essa informação eu não posso dar porque não foi puiblicada ainda. Logo logo nós vamos ter novidades sobre ela.

O GLOBO: Este ano?

MIGUEL NICOLELIS: É possível. A gente não pode falar nada antes de a revista que está revisando o trabalho se manifestar.É uma norma, a gente não pode comentar uma pesquisa que está sob revisão editorial.

O GLOBO: O fato de o senhor ter idealizado e construído o instituto em Natal com seus esforços é um mea culpa por estar há mais de 20 anos trabalhando fora do Brasil?

MIGUEL NICOLELIS: Isso não existe. Eu sou um cientista e cientistas não têm fronteiras.Fiz isso pela minha ligação com o Brasil, e não para saldar qualquer dívida. Sempre digo que a gente vai embora do Brasil, mas o Brasil não vai embora da gente. Eu fiz isso pelo meu país. Devo muito ao país em outros departamentos, estudei aqui, cresci aqui e achei que era importante devolver ao país alguma experiência que adquiri lá fora.

O GLOBO: O projeto do instituto existia há muito tempo na sua cabeça?

MIGUEL NICOLELIS: Sim, mas ele só se tornou possível em 2002, quando eu percebi que os ventos políticos no Brasil tinham mudado, e na minha opinião era o momento propício para construir um país que a minha geração sempre sonhou e nunca conseguiu ter.

O GLOBO: Existem outros projetos semelhantes?

MIGUEL NICOLELIS: Temos (a Associação Alberto Santos Dumont de apoio à Pesquisa, uma OSCIP presidida por Nicolelis) uma escola nos mesmos moldes de Natal na Bahia, que abriu semanas atrás. É o Centro Educacional de Ferrinha, em Ferrinha, com 400 crianças. Também temos um laboratório de pesquisas dentro do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, de neurociência clínica aplicada, e tem outros projetos no papel que queremos desenvolver Brasil afora. Mas temos que ir devagar porque o tranco é grande.

O GLOBO: Como esse laboratório do Sírio-Libanês trabalha? Tem interatividade com pacientes em tratamento?

MIGUEL NICOLELIS: O Hospital Sírio-Libanês queria um laboratório de neurociências clínicas, de reputação internacional, e nós fizemos uma parceria na qual eu ajudei o hospital a montar, equipar e contratar pessoas, e em contrapartida eles custearam nosso centro de saúde materna e infantil em Macaíba. Foi uma parceria histórica, na qual um hospital de São Paulo passou a custear serviços médicos de alto nível na periferia de Natal em troca de uma tecnologia, de um knowhow de construção de laboratório que eu tinha. Foi uma parceria ideal para ambos.

O GLOBO: A pesquisa desenvolvida no Sírio-Libanês já se reflete no tratamento dos pacientes do hospital?

MIGUEL NICOLELIS: Não, mas está começando agora. Esse ano nós associamos várias tecnologias que eu desenvolvi nos Estados Unidos para o hispital Sírio-Libanês, e estamos prestes a aplicá-las em novas cirurgias ao longo deste ano.

O GLOBO: Quais são as tecnologias?

MIGUEL NICOLELIS: Para o tratamento do mal de Parkinson, com novos eletrodos que desenvolvemos e um método novo de registro de atividade cerebral durante a cirurgia, que auxilia o cirurgião a encontrar a localização precisa dos implantes.

O GLOBO: Que efeitos isso tem no tratamento?

MIGUEL NICOLELIS: Existe toda uma redução no tempo cirúrgico, o que acarreta maior rapidez na recuperação pós-cirúrgica. O foco é a recuperação dos movimentos. O uso dessa tecnologia deve começar nos próximos meses.

Fonte: O GLOBO